quinta-feira, 31 de maio de 2007

Minha avó - parte II - Dias de chuva e medinho, dentro do olho azul

Escrito em 18 de maio de 07 - Contar histórias, Contadora de Histórias!

Tá chovendo...e sempre que chove muito assim, eu me lembro de quando morávamos na Rua Fábio Luis, em um bairro da zona leste de São Paulo. Minha avó Maria morava conosco e cuidava da “netaiada”, que era terrível. A tia Sonoe morava na mesma rua, só que um pouco mais pra cima, bem pertinho da escola onde estudávamos.

Nossas casas eram muito bacanas, com quintais imensos de terra batida, muita planta e flor...Mas a casa da tia Sonoe...tinha um pé de abacate!!!Ai, que gostoso quando botavam um balanço!!! E a festa junina então? Era bom demais!

Vai daí que minha avó, às vezes, ia pra casa desta minha tia e levava a gente com ela.

Nós, os netos, gostávamos quando dava temporal; a chuva forte fazia um enxurrada em nossa rua, que era uma delícia. Passávamos um tempão lutando contra a força das águas, poderosos como o quê, pra subir rua acima. Minha avó ficava muito preocupada, mas não conseguia dar conta de segurar todo mundo. E era perigoso a gente se cortar com um caco de vidro ou mesmo pegar doença do xixi de algum animal. Preciso dizer pra vocês que na minha infância, sempre que chovia, “acabava a força”. Sim, acabava a energia elétrica. Ficava tudo no breu! E, minha avó sabia...E, muito sabida, quando percebia que “armava o tempo”, passou a dar tarefa pra cada neto. Um pegava as velas. Outro cobria os espelhos com toalhas. Um fechava a torneira, bem mesmo, pra não pingar. Afinal, tudo isso aí atraía “relâmpu”! Os menores tinham que subir em algo pra poder alcançar seu objetivo. Ah! Tinha que arrumar a mesa; tirar tudo de cima pra botar a vela e acendê-la: já, já, ia “acabar a força”.

E, pronto! O tempo fechava, escurecia tudinho e puf! A luz sumia...

Ai, que bom que a vela tava acesa, né?

- Eu tinha certeza que minha avó Maria tinha poderes especiais, era mágica, sei lá! Ela sempre sabia “de um tudo”!!! - e a gente nem saía pra buscar enxurrada...

Daí, ela sentava numa cadeira e botava todo mundo em volta da mesa. Meu irmão sentava pertinho de mim, quase colado. E o silêncio tomava conta da cozinha, lugar do fogo sagrado e criativo, enquanto ela passava as pontas dos dedos na toalha de mesa gasta, tentando arrumar.

Era uma eternidade de silêncio, só interrompido pelo trovão, logo após o “relâmpu” clarear tudo...

A história:

A certa altura a avó começava a contar a história do homem que ela conheceu quando morou no interior, lá na fazenda. Ele cuidava de uma boiada e quando percebeu que o tempo “armou”, recolheu o rebanho e foi se recolher também. Só que um bezerro escapou e saiu pelo pasto afora...

O homem (que cada vez que ela contava a história tinha um nome diferente) ia sair pra buscar o bezerro, mas sua avó disse pra ele não sair não, que era perigoso andar fora de casa em dia de temporal, tem muito “relâmpu”...pode morrer até!! Ele nem deu bola pro que a avó disse e saiu, em busca do bezerro. Não voltou. Encontraram o coitado no dia seguinte, debaixo de uma árvore perto do descampado: torradinho! Caiu um “relâmpu” bem no meio do “cucurutu” dele!!!

Êita, que a gente nem respirava de tanto medo! E quando dava de dar um relâmpago daqueles que iluminam tudo, justo na hora que ela contava a parte do “torradinho”? Ai, que meu irmão só faltava enterrar a cabeça no meu sovaco.

Pois é, em um desses dias de temporal e de histórias - sempre terríveis - ela contava a parte que o homem estava embaixo da árvore, quando caiu um raio em cima do pé de abacate da tia Sonoe! Vixe, que foi uma gritaiada só, uma choradeira e até minha avó, que tentou disfarçar ficou com medo. Bem que eu vi, dentro do olho azul dela, o medinho iluminado pelo clarão do raio e depois da vela...

E agora, ainda chove por aqui. Já não temos mais a avó Maria pra contar histórias em dias de chuva, mas, se chove, inevitavelmente eu lembro do medinho dentro daquelo olho azul especial.


crédito da imagem: www.gigacolor.com.br/imagem/16/img_2.jpg