segunda-feira, 28 de abril de 2014

Histórias ao pé do ouvido

"No meio do movimento do barulho da cidade, uma contadora de histórias e um banquinho, para te contar baixinho uma história.
A narradora escolhe uma pessoa, convida-a para sentar-se e venda seus olhos.
Ser escolhido para escutar uma história no escuro de si mesmo, é um pedido do tempo, um alento, um sustento."



Meu desafio era voltar à praça Getúlio Vargas, aqui em Guarulhos, agora com a proposta das Histórias ao pé do ouvido.

Foi em uma manhã nublada de uma quarta-feira de outono que chamei minha amiga-fotógrafa-mais-bacana-do-mundo-todo Kaline, para registrar a intervenção. Também chamei o meu amor-artista Donato para observar a reação das pessoas em volta e fomos até lá.

Depois de uma boa olhada na velha praça, abordei meu primeiro ouvido:

Moço-estudante com camisa do Black Sabbath:

Ele esperava por seu transporte fretado quando eu me aproximei.


Ele achou engraçado, mas concordou em participar.


Vendei seus olhos e narrei a história que falava sobre os pensamentos que a gente carrega.


Quanto a história chegou ao fim, desvendei o moço, que sorria...



Parece que nem ele acreditava que tinha se deixado vendar por uma pessoa desconhecida, em uma praça, para escutar uma história. Surpreso dizia que prestou atenção na narrativa e não no que acontecia em volta.

O homem que cortava unhas:

Quando eu o convidei, ele me disse que "gostava bem" de escutar uma história vendado, mas provavelmente sua mulher, que ele esperava sair do banco a qualquer momento, não "gostava nada" daquilo:

"_ Vai dar problema!" - disse ele.

Pensei ser melhor não mexer com problema, e me despedi agradecida.


A moça enfermeira-aberta-pra-vida:

Cheguei perto, fiz o convite e ela aceito de pronto!


E se entregou à história...





Ao ser desvendada ela disse ter gostado muito e que se concentrou bastante na história. 
Fez relações entre a narrativa que falava sobre coragem e a vida da gente em sociedade. 



Disse que eu preciso continuar com este trabalho.

Essa moça, assim como eu, trabalha com pacientes de UTI (Unidade de Terapia Intensiva).

Só que ela resgata as pessoas no SAMU (transporte de socorro, de urgência) e eu conto histórias dentro dos hospitais. Ela tem coragem de ajudar. Eu tenho intenção.

O homem-quieto:

Este não quis ser vendado e eu disse que estava tudo bem, que abordaria outra pessoa, já que a proposta da intervenção era a pessoa escutar uma história de olhos vendados.


Ele me disse que fazia questão de escutar a história e me contou a sua:

"Eu fui numa igreja de crente. Eu não sou crente, mas gosto de escutar a Palavra. Então o pastor disse pra gente fechar o olho pra ele fazer a oração. Eu não fechei e disse: 
_ O senhor pode fazer sua oração, que o que eu vou escutar de olho aberto é a mesma coisa que eu vou escutar de olho fechado. 
Então a senhora faz favor de contar a sua história."

E eu? Eu contei...


Contei uma história sobre um homem que precisou caminhar pelo mundo e voltar para o seu pedaço de chão, para reconhecer o valor de sua vida.


Ele gostou muito e falou sobre como sua vida era parecida com a do homem da história.

O meu amor-artista precisou explicar o que acontecia para muitas pessoas que passavam.



Sinto que a história, quando começa a ser narrada, cria um campo em torno de mim e a pessoa que escuta a história.

Vai daí, que ninguém ousa se aproximar, respeitando momento de tanta cumplicidade.

Pois então a manhã já acabava e tínhamos que seguir, para os outros compromissos do dia.

Feliz que transbordava eu fui alimentar o corpo, que a alma estava repleta!

O caminho é longo e próspero e ele apenas começou no pé do ouvido.

Gratidão!

Fotos: Kaline Kloster https://www.facebook.com/pages/Kaline-Kloster-Fotografia/240656879460320?fref=ts


sábado, 26 de abril de 2014

Histórias ao pé do ouvido - como tudo começou

"(...) Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós (...)"
Manoel de Barros

Há tempos eu tentava voltar à Praça Getúlio Vargas, para contar histórias e não conseguia.

Eu só conto as que gosto e que escolhem ser contadas. É assim que é. E não conseguia mais gostar de me colocar na praça como uma atração, para quem estivesse de passagem, ou não.

Isso se dá porque eu enjoo logo de tudo; amo uma novidade! Gosto de reinventar, de me reinventar.

Vai daí que um grupo de amigos aqui de Guarulhos se reúne vez em quando para fazer festa. Festa de ocupar, festa de celebrar, festa só porque se quer..

Nova festa marcada, cada um faria algo relacionado à sua área de interesse. Um cria imagem, outra costura, um toca, outra faz moda, um projeta, outra conta histórias.

Mas eu não acho nada elegante em uma festa onde todos estão para conversar, de repente aparecer alguém e começar a narrar. Acho meio invasivo, meio opressor, como se todos tivessem que parar de falar e prestar atenção. Não combina com o que faço, penso eu.

Daí resolvi Contar "Histórias ao pé do ouvido".

" No meio do movimento e do barulho da cidade, uma contadora de histórias e um banquinho, para te contar baixinho uma história.
A narradora escolhe a pessoa, convida-a para sentar-se e venda seus olhos.
Ser escolhido para escutar uma história no escuro de si mesmo, é um pedido do tempo, um alento, um sustento."

Como algumas pessoas já conhecem meu ofício, perguntavam quando eu contaria histórias. Daí eu propunha que ela sentasse no banquinho e a coisa toda acontecia. Um por um, foram vários adultos e crianças durante o dia e a noite.

A festa estava muito boa, tudo acontecendo muito bem, mas a moça aqui não tinha ninguém que registrasse sua intervenção.

Mas a memória é coisa boa, então... Algumas experiências:

Uma colega-contadora, que já conhecia a história que eu narrei. Foi bacana ver sua expressão, a cada parte da narrativa, como se fosse notícia nova.

O moço-desenhista, que ao final disse que precisava fazer uma animação daquela história, porque ele viu todas as imagens com nitidez e os ruídos da festa não foram notados.

O moço que faz cinema perguntou se eu pensava em fazer um CD de histórias, porque ele achava bacana.

Uma doce criança, mal conseguia segurar suas perninhas, como se andasse junto com a personagem da história.

Minha amiga-criança que adora escutar histórias, perguntou se podia escutar sem a venda nos olhos. Eu perguntei por quê e ela me disse que tinha medo.

Então eu sugeri que ela aproveitasse porque não estaria sozinha, afinal eu estaria ali, junto com a história. Talvez fosse uma boa hora de espantar o medo.

Ela concordou e voltou várias vezes, pedindo para que eu a vendasse e lhe contasse outra história. O medo já era...

O Maurício Burim, amigo fotógrafo, conseguiu registrar esses momentos:





O moço-mais-curioso-do-mundo-todo ficava mexendo a cabeça com o queixo levantado, como se apanhasse as memórias com o pensamento.

Enquanto todas as histórias eram contadas, a curiosidade tomava conta do entorno: as pessoas em volta queriam saber o que estava acontecendo, o que eu fazia ali, cochichando no ouvido da pessoa vendada. 

Mas, em momento algum NINGUÉM se aproximou. Era como se criássemos um campo intransponível em volta de nós, uma redoma protetora. Espaço afetivo, próximo e terapêutico.

Daí, a certeza veio... Seria assim que eu voltaria para a praça: Histórias ao pé do ouvido! 

Gratidão aos ouvidos encantados, à coragem e à imaginação!

Fotos: Maurício Burim